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A dor de ouvido

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Para ouvir Terry Reid – Brave Awakening

A Dor de Ouvido

Todo mundo tem um clique, sabe, e o meu foi esse.

Era uma vez um dia de muita chuva (e uma história piegas, você pensa, talvez, mas que chovia pra caralho nesse dia, isso chovia) e, para variar, eu estava mal. Minha imunidade nunca foi das melhores, mas nos últimos tempos ela está de parabéns equivalendo-se a um saco de merda. Não posso culpar ninguém.

Acordei às 3h00 a.m. com os dois ouvidos surdos e com uma dor constante que beirava à insanidade. A dor era tanta que chegava a ser ridícula – e olha que eu aguento o tranco quando o assunto é dor.

Passei a madrugada pensando em suicídio e implorando para que o relógio marcasse 7 horas e eu pudesse me dirigir ao pronto atendimento que fica perto de casa. Eu só queria um médico, só isso. Apenas por questão de informação: ir ao médico é sempre a minha última opção.

Cada minuto se arrastou como se fosse uma hora, “o tempo é relativo”, já dizia o grande. Finalmente deu a hora e caminhei para o ambulatório no qual passei uma hora e meia de nervoso para nada.

Não está infeccionado. – disse o médico que não usava jaleco – na verdade, ele parecia estar pronto para uma balada de playboy –, e que não me olhou nos olhos um segundo sequer, estes, por sua vez, não desgrudavam do smartphone de maçã que apitou durante todos os quatro insignificantes minutos que permaneci no consultório. – Você prefere injeção ou comprimido?

– Benzetacil não faz efeito para mim, doutor.

– Mas não é antibiótico, eu vou te passar antiinflamatório. Tome Nimesulida por três dias e vá embora. (O “vá embora” não existiu).
Sem vontade alguma de discutir, peguei a receita e soltei o agradecimento mais cansado que você possa imaginar.

Ao chegar em casa, a dor piorou 5 vezes mais. O ouvido começou a chiar, a fazer um barulho de borbulhas (infelizmente, não as de amor como as do Fagner) e a vazar um líquido marrom que, na hora, presumi ser cera.

É assim então? A vida por um fio por causa de uma dor de ouvido?

Eis que tomei uma atitude decente e resolvi ir ao hospital, no caso, público. Cheguei ao prédio onde havia um andar com especialidade em otorrinolaringologia com o ouvido pingando cera, mas “desculpa, aqui só com encaminhamento, você precisa passar no PS comum primeiro”.

Muita chuva e uma considerável distância de um prédio até o outro, me senti num filme clássico de drama com toda a climática cinza e nublada em meio a um complexo de prédios com paredes de tijolos e gente doente.

Taquei papel dentro do ouvido, a dor latejava e as horas seguiam. Esperar já é ruim, esperar com dor é ainda pior, não é mesmo?

O que te traz aqui?
“As pernas, dur”.
E assim prosseguiu o papo chato de contar quando começou, o que teve antes, o que sentia, o que não sentia e isso tudo com os ouvidos semi-surdos.
– Leva esse papel aqui pro otorrino, é um encaminhamento pro PS de lá, você passa direto.

Dor.

– Tem muita gente na espera? – perguntei pro rapaz que estava no balcão.
– Tem não. – e fez uma cara torcida que mais parecia ser de nojo. Não o culparia se fosse por causa da cera vazando do meu ouvido.

Quase duas horas se passaram. Ouvi meu nome e era como se anjos de asas brancas tivessem me chamado para o paraíso. Minha cura estava próxima.

– Como você está? – perguntou-me a médica residente.
Minha vontade era de falar “moça, me ajuda, por favor, eu não aguento mais” mas contei a mesma história pela terceira vez e ela a repassou todinha para o médico supervisor.

Fiquei meia hora em consulta, o que achei um máximo em vista da “consulta” da manhã que durou menos do que uma música punk. Eu já sabia que meu nariz era todo obstruído, que minhas amígdalas são imensas, que minha adenoide é uma desgraça, que um acúmulo de sinusites e recorrentes catarros (peço desculpas) causaram essa baita infecção de ouvido, mas eu apreciava aquele momento que era só meu.

– Vou te passar esse remédio, e esse, e mais esse. Você volta daqui uma semana, tá bom?

Antibiótico pesado por dez dias e um plus de antiinflamátrio. Saí da sala com um destino certo: a farmácia.

Entrei no elevador que era bastante precário e não parava por inteiro no andar deixando um micro degrau pra você ficar ligeiro na hora de entrar ou sair. A ascensorista, que chamava Rute, de acordo com seu crachá, parou no terceiro andar (andar da neurologia) e disse “só cabem mais dois” e entraram duas senhoras.

Uma delas era cega e parecia conhecer Rute e disse sem critérios ou engasgos “viu, eu tô com câncer…”.

Pausa pro elevador que travou no segundo andar.

– Não cabe mais ninguém, desculpa. – disse Rute bem alto.
Eu tô com câncer de medula óssea. – a senhora não pareceu se importar com quem mais pudesse estar ouvindo aquilo.
– Meu deus, só por deus.

Térreo.

– Tem que ter fé em deus. Cuidado com o degrau. – falou Rute, ajudando a senhora cega e com um recém câncer de medula óssea a sair do elevador.

Rute deve ouvir coisas como essa todos os dias.
Eu não.

Saí do elevador como se tivesse saído de uma guerra. Observei aquela senhora corajosa caminhar sozinha, num dia de chuva, sem enxergar e com a notícia de um câncer que, muito provavelmente, não teria muita opção de cura como se nada tivesse acontecido.

Sabe toda a minha história que você leu acima? Você pode (e deve!) esquecer. Você deve esquecer todas as miudezas, as futilidades mundanas, as reclamações mesquinhas, as inutilidades passageiras. Esqueça tudo.

A gente se acostumou a reclamar do ônibus cheio, a lamentar a dor de cabeça, a guardar mágoas de pessoas, a xingar a lentidão do trânsito, a criticar o outro sem saber da sua história, a brigar pouco e se importar por menos. Não faz sentido.

Minha vida mudou a partir desse dia. Um baque.
Minha vida mudou por causa de uma cera de ouvido.
Espero que mude a sua também.

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